
Naquele
dia tinha tempo. Estava à espera que chegasse a hora da consulta ao cardiologista. A minha vida era
um inferno, desde que fiquei gravemente doente e só. Tudo depois da minha mulher me ter
abandonado. De qualquer forma ela era uma cretina. É sempre melhor ficar velho,
desgarrado, sem filhos, amigos ou companheira do que aturar aquela mulher.
Sabia que minha vida se exauria, com o coração fraco, sentia-me miserável, com
raiva e não gostava de ninguém. Pensava nisso, quando esbarrei contra a porta
de uma livraria. Já por várias vezes a tinha avistado de longe e passara junto
dela uma ou duas vezes, sem nunca ter tido vontade de lá entrar. Por acaso, o consultório
do médico ficava ali ao lado. Olhei para cima, sem muito interesse, para tentar
ler na placa o nome da livraria; impossível, as letras estavam gastas pelos
anos e intempéries. Depois, reparei que na montra estava um gato persa,
cinzento e branco que dormia, serenamente, em cima dos livros, como muitas
vezes se vê nas lojas típicas, da cidade de Paris. Toquei primeiro ao de leve
no vidro, depois com firmeza, na esperança que o bicho desse um pulo de susto,
nada… Foi mais pelo gato que pelos livros que entrei. Não havia nenhum
objectivo concreto, era só para matar o tempo. Assim que abri a porta uma
sineta tiniu uma nota plangente, prevenindo com o som a minha chegada. Não vi
ninguém, nem livreiro nem clientes e um silêncio de presbitério enchia o espaço.
Imediatamente me apercebi que aquela não era uma livraria comum, como tantas
outras, indefinidamente iguais e onde se vendem sempre os mesmos livros. A sala
surpreendeu-me pelo tamanho, tendo em conta a sensação de exiguidade que dava o
edifício visto de fora. O cheiro característico dos livros. As estantes colossais
de madeira verdadeira, provavelmente de carvalho, erguiam-se pelas paredes ao
longo de um pé-direito de pelo menos cinco metros. Havia livros até ao cimo, destacava-se
no tecto uma clarabóia redonda de vitrais pitorescos que iluminavam a loja com colorações
maravilhosas, dando-lhe um ambiente extraordinário, de biblioteca, sublime,
honorífica, como numa fantasia de Hollywood. Os livros todos encadernados em
pele, como os livros antigos, sem nenhum tipo de gravura nas capas. Ao fundo da
livraria ou da biblioteca, agora já não tinha a certeza, havia uma escadaria
que bifurcava em duas plataformas de metal junto às estantes, circundando a
sala em forma de elipse, dividindo-a em dois andares. As mesas maciças cheias
de livros que não destoavam dos outros. Peguei num livro ao acaso, cujo título
e autor não me diziam nada, Zadig ou o Destino,
de Voltaire. Abri-o e fiquei admirado quando verifiquei que todas as suas
páginas estavam em
branco. Abri outro que estava mesmo ao lado, por mera
curiosidade, O Ingénuo, novamente de
Voltaire, e… em branco.
O Crime e Castigo, e O Idiota, de Dostoiévski e outro, e outro, e outro… excepto as
capas que exibiam os títulos e autores estampados a dourado, os livros
estavam todos em branco.
Enquanto,
atónito, cogitava sobre a inutilidade dos livros, surge por detrás de uma porta,
quase invisível, forrada com papel a imitar livros, um homem que supus ser o
dono ou o bibliotecário.
Sobressaltei-me
com o aparecimento repentino daquele indivíduo invulgar. Mais ou menos da minha
idade, de cabelo imensamente preto, parecia pintado, muito ralo e penteado de
forma a tapar a calvície. As orelhas peludas, uma maior que a outra. Um nariz,
proeminente, ampliado pela alta estatura e magreza do corpo, enfarpelado com
uma casaca negra comprida. Os olhos ensanguentados dirigiram-se a mim.
-
Em que posso ser-lhe útil? – Perguntou, colocando as duas mãos escanzeladas
sobre o balcão.
Sem
saber bem o que dizer, pois não tinha entrado ali por estar interessado em livros,
longe disso, decidi a contragosto, impelido pelo ambiente que me rodeava, fazer
uma pergunta:
-
Estamos numa biblioteca ou numa livraria?
Responde-me,
enigmaticamente, com outra pergunta:
-
Faz alguma diferença para si?
-
Não. Quer dizer… Faz! Se for uma livraria vende livros, certo?
Olhou
para mim, como se tivesse percebido perfeitamente que eu não era um leitor habitual e disse:
-
Em todo o caso não fará nenhuma diferença para si. Todos os meus livros estão
completamente em branco.
Sem
demonstrar muita surpresa, pois eu próprio já o tinha confirmado, pergunto:
-
Então, para que servem todos estes livros?
-
Os meus clientes conhecem, perfeitamente, o conteúdo dos livros que compram,
não necessitam de os ler, já o fizeram antes. No entanto, aqueles que honram e merecem
os meus livros podem sempre reescrevê-los. A leitura que se faz de um livro é
sempre diferente, depende da pessoa e da idade com que se lê.
-
Ah! – Exclamei, como se o tivesse apanhado em falta. E com algum
sarcasmo disse:
– Isto não é nem livraria nem biblioteca, mas
uma papelaria requintada. – Ri, de boca fechada, para não se notar muito que
estava a saborear o momento.
Sem
mudar de expressão e condescendente, o homem responde:
-
Os meus clientes não vêm cá, exactamente, para comprar livros. Vêm para comprar
outra vida. Esta é uma casa encantada e os livros são mágicos por definição. Os
leitores, aqueles que amam verdadeiramente os livros, têm através deles uma
segunda oportunidade, uma segunda vida. Ao elegerem um livro dá-se uma
metamorfose física e moral, fantástica, portentosa, perfeita, acontece assim
que saem por aquela porta, não me pergunte porquê. Porém, é a mais pura das
verdades. Encarnam a personagem principal do livro, tão intensamente, que o que
é ficção passa a ser realidade. Quão bela pode ser a fantasia quando tomada por
verídica. Não acha?
Deu-me
vontade de rir. É ridícula a maneira como os livreiros são capazes de enfatizar,
efabular a leitura. Resolvi ripostar:
-
Ah, ah, ah, é claro! Sem qualquer dúvida. – Digo ironizando – Mas sabe o que
penso disso!?... Os livros já passaram de prazo e foram escritos, na sua
grande maioria, por pessoas que já morreram ou por quem nada tem a acrescentar.
Ler é viver a vida dos outros e não ter vida própria. Ler requer tempo e o
tempo nos dias de hoje é um luxo. A verdadeira sabedoria está na experiência da
vida per se e não nas
sumidades da enciclopédia. A escrita é um simulacro da fala que parece muito
útil para a memória, o saber, a imaginação, mas que acaba por ser
contraproducente. As pessoas confiam nela e não desenvolvem a suas próprias
capacidades. Se quer saber, acho que as pessoas lêem demais. Antes de lerem um
livro, deveriam reflectir sobre se esse livro irá de facto melhorar a sua vida;
é que a grande maioria deles não melhora.
O livreiro
manteve-se impávido. Obsequioso, diz:
- Há alguma verdade
no que disse, de facto existem alguns livros que não melhoram a vida das
pessoas, até pelo contrário. Contudo, a opção é sempre pessoal, a felicidade é
dever exclusivo de cada indivíduo, depende só de nós e nunca dos outros. Mas…
cuidado! A ignorância praticada de livre e espontânea vontade é o maior dos
erros. O perigo não está em ler muitos livros, mas sim em ler apenas um.
Encolhi os
ombros em sinal de desprezo. Estava na hora da consulta, tinha que me retirar,
mesmo assim, decidi comprar um livro que estava em cima do balcão, com
um título que li de relance e que me pareceu adequado à situação bizarra: qualquer coisa que tinha a ver com uma comédia. O livreiro sorriu, maliciosamente, enquanto me
dava o troco. Virei-lhe as costas sem me despedir e a sineta tiniu novamente
com a porta a fechar-se atrás de mim.
Ainda não tinha
dado um passo na rua quando senti uma pontada no peito e uma enorme atroada se
deu sob os meus pés. Sinto a superfície a tremer, abriu-se uma fenda no chão e,
de repente, tudo à minha volta desaparece, os prédios, os carros, as pessoas, como
se tivessem subido aos céus. Enquanto caía a grande velocidade, num movimento
circular, por uma espécie de fossa em forma de cone invertido, comecei a ouvir
gritos de dor e sofrimento misturados com sons de furacão. Vejo seres
mitológicos, um com três cabeças, meio cão, meio dragão e com cauda de serpente.
Cascatas e rios de água com sangue borbulhante, fervente. No centro de uma
muralha de ferro e de um fogo intenso, vejo mil anjos caídos. Começo a
acreditar que o livreiro me tinha dito a verdade. Lembrei-me do livro que tinha
comprado. Tentei ler novamente o título e o autor, para tentar perceber o que
me estava a acontecer: Dante Alighieri, A
Divina Comédia; fiquei na mesma…
Continuei a
cair, a cair, durante uma eternidade, pela cova sombria, envolto numa tempestade de gelo
e neve que ia arrefecendo, cada vez mais, à medida que se aproximava do centro
da Terra. Bati no fundo, atordoado, no meio de um lago gelado. Olhei em volta horrorizado
e li, em letras miúdas, o subtítulo que me tinha escapado à primeira:
Parte I, O Inferno.
Jaime Bulhosa